Estresse e esclerose múltipla

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As evidências atuais reforçam cada vez mais o papel do estresse psicológico e a forma como lidamos com ele sobre a saúde humana, com grande participação do sistema imunológico como mediador destas respostas. Neste horizonte do conhecimento estão as doenças autoimunes e a esclerose múltipla.

No mês de dezembro 1822 eu viajei de Ramsgate para as Terras Altas da Escócia, com o propósito de passar alguns dias com quem eu tinha o carinho de um filho. Na minha chegada, encontrei-o morto. Eu fui ao seu funeral. Havendo muitas pessoas presentes lutei violentamente para não chorar, contudo, eu fui incapaz de impedir-me de fazê-lo. Logo após o funeral, fui obrigado a ler minhas cartas e suas respostas mas como meus olhos estavam tão afetados, quando fixava os objetos por alguns minutos, a conseqüência era a indistinção da visão. Até que eu tentasse ler, ou usasse minha caneta, eu não estava consciente dos meus olhos, estando no mínimo comprometidos. Logo depois, fui para a Irlanda e, sem nada ter sido feito com meus olhos, eles completamente recuperam a força e distinção da visão…

– Augustus d’Esté

O trecho acima é uma tradução do diário pessoal de Augustus d’Este, nascido em 1794, neto do rei George III da Inglaterra, que revela um histórico médico sugerindo fortemente que tenha sofrido de esclerose múltipla (EM). O início da EM neste jovem parece ter ocorrido em 1822 após forte estresse emocional associado ao luto, com a descrição de acometimento da função visual no que entendemos como neurite óptica, uma inflamação no nervo óptico, que se resolveu espontaneamente, como tipicamente ocorre nestes casos.

De fato, na prática diária, com alguma frequência nos deparamos com situações semelhantes em que um evento com elevado teor emocional antecede em dias ou semanas o aparecimento de um surto da EM.

Algumas evidências científicas corroboram estas observações clínicas, mostrando associação entre estresse e atividade de doença. Por exemplo, já se demonstrou que eventos estressantes do cotidiano estão associados ao aparecimento de novas lesões à ressonância magnética (RM) após um período de 4 a 8 semanas. A RM é utilizada nestes casos por ser um marcador mais objetivo de atividade de doença, onde podem ser observadas as áreas de inflamação.

Diversos estudos têm indicado que uma estratégia de enfrentamento da doença – do inglês “coping” – considerada mais adaptada acaba por moderar o efeito do estresse sobre o aparecimento de novas lesões vistas à RM e está ainda associada a um menor número de exacerbações da doença. Isso mesmo, a forma como enfrentamos a doença pode influenciar a sua evolução.

As terapias cognitivo-comportamentais de gerenciamento de estresse ensinam estratégias de enfrentamento que são destinadas a reforçar a capacidade do paciente para prevenir a ocorrência de eventos estressantes e melhorar a capacidade de gerir as suas respostas a esses eventos quando eles ocorrerem.

Um programa de gestão do estresse para pacientes com EM foi validado por pesquisadores da Universidade de Northwestern, Chicago, EUA. Neste programa os participantes se reúnem com um terapeuta para 16 sessões individuais de 50 minutos realizados ao longo de 20-24 semanas. As primeiras seis sessões são focadas no ensino de habilidades para resolver problemas, relaxamento, aumento de atividades positivas, reestruturação cognitiva e aumento do suporte social. Todos os pacientes são estimulados e adequar o tratamento para atender suas necessidades usando módulos que chamam de opcionais, incluindo o treinamento de comunicação e assertividade, o manejo da fadiga, a redução da ansiedade, o controle da dor, a gestão de problemas cognitivos, o tratamento da insônia e tratamento da disfunção sexual.

Em um estudo que envolveu diferentes centros nos EUA, publicado em 2012 na revista americana Neurology, pesquisadores avaliaram o efeito do protocolo de gestão do estresse mencionado acima comparado a uma intervenção neutra (aguardar na fila de espera para o protocolo) em um grupo de 121 indivíduos com EM. Todos os participantes realizaram RM do crânio no início do estudo e com 8, 16, 24, 40 e 48 semanas e metade se submeteu ao protocolo de intervenção. Os autores observaram no grupo que se submeteu ao protocolo uma redução significativa do número de novas lesões vistas à RM e ainda um aumento do percentual de indivíduos que estavam livres de novas lesões, um achado surpreendente. Estes resultados ocorreram independentemente da medicação imunomoduladora empregada e o efeito desta intervenção foi semelhante ao observado em tratamentos com medicamentos novos que estão em fase de estudo. Um ponto intrigante do trabalho foi mostrar que os benefícios só se mantiveram durante o período da terapia, visto que após cinco meses do seu término grande parte do efeito tinha se perdido.

De uma forma geral, estes achados dão suporte à hipótese de um efeito anti-inflamatório da psicoterapia para gestão do estresse. Além do mais, os relatos dos pacientes mostram ainda que a intervenção diminuiu o nível de estresse percebido. Com isso, este estudo mostrou, pela primeira vez, uma evidência de ligação direta entre estresse e atividade inflamatória na EM.

Devemos lembrar que não somente o estresse pode estar associado à ocorrência de surtos, mas diversos outros fatores. Por exemplo, com freqüência as infecções de vias aéreas e urinárias são causas comuns de recaídas, por promoverem um aumento da resposta inflamatória no organismo, necessária para combater o agente infeccioso, mas que acaba por facilitar o aparecimento de novas lesões no sistema nervoso e consequentemente, os surtos.

Muito avançamos desde 1822. Independentemente do momento em que cada um se encontre na caminhada para superação dos seus sintomas, o auto-conhecimento e a gestão eficiente do estresse do dia-a-dia a que todos estamos sujeitos é um grande passo para um resultado  pleno e satisfatório. O maior desafio agora é aceitar a importância da terapia e colocar estes ensinamentos em prática.

Referências

Landtblom AM, Fazio P, Fredrikson S, Granieri E. The first case history of multiple sclerosis: Augustus d’Esté (1794-1848). Neurol Sci 2010;31(1):29-33.

Mohr DC, Hart SL, Julian L, Cox D, Pelletier D. Association between stressful life events and exacerbation in multiple sclerosis: a meta-analysis. BMJ 2004;328:731.

Mohr DC, Lovera J, Brown T, et al. A randomized trial of stress management for the prevention of new brain lesions in MS. Neurology 2012;79:412-419

Thiago Junqueira

Doutorado em Ciências (Neurologia) pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Em sua formação possui Pós-graduação em Nutrologia pela ABRAN. Membro Titular da Academia Brasileira de Neurologia.

Ver comentários

  • Excelente artigo, como psicóloga atendo na abordagem TCC e acredito também ser uma grande aliada no tratamento

  • Excelente artigo.
    Tenho uma dúvida: a fisioterapia para a cognição pode reverter os episódios de esquecimentos referente à doença? Ou pelo menos ajuda bastante ou para essa parte de déficit cognitivo/atrodia cerebral? Existe diferença entre déficit cognitivo/atrodia cerebral?

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