Em setembro de 2010 foi aprovado, nos EUA, o primeiro medicamento oral imunomodulador para tratamento da forma recorrente-remitente de esclerose múltipla, Gilenya. Posteriormente, o medicamento foi aprovado para uso na Europa e em outros países – incluindo o Brasil – e encontra-se atualmente em uso na prática clínica diária. Seu princípio ativo é o fingolimode, uma substância produzida a partir da extração de fungos, possuindo mecanismo de ação novo em comparação aos tratamentos injetáveis até então existentes. Nos parágrafos seguintes vamos entender melhor sobre sua descoberta, funcionamento, eficácia e alguns os cuidados com o seu uso.
Origem
Os compostos precursores do fingolimode possuem origem a partir do estudo de uma espécie de ascomicetos, fungos do filo Ascomycota, caracterizados por infectar insetos em diferentes fases do seu desenvolvimento, parasitá-los e, posteriormente, crescer sobre o seu arcabouço para formar o talo e, então, seu corpo frutífero (cogumelo). Este ciclo biológico foi, em parte, reconhecido pela fitoterapia chinesa através do nome “Dong Chong Xia Cao“, que significaria “verme no inverno, grama no verão”, descrevendo as duas fases do ciclo mencionadas.
A medicina popular reconhece uma extensa gama de benefícios à saúde produzidos pela ingestão de cogumelos. Técnicas analíticas modernas identificaram diversos metabólitos com atividade biológica em humanos, incluindo a cordicepina, que inibe o crescimento de tumores (derivada da C. militaris que parasita o bicho da seda), a ciclosporina, um imunossupressor clássico muito usado em transplante renal (derivada da C. subsessilis que infecta o escaravelho) e a miriocina, um imunossupressor com atividade 10 a 100 vezes maior a ciclosporina. Esforços para produzir compostos derivados da miriocina com menor toxicidade gástrica levaram, em 1994, à identificação de um novo composto, o fingolimode, que posteriormente se descobriu atuar de forma diferente dos imunossupressores clássicos, represando células agressivas do sistema imune nos linfonodos, o que as impedia de agir e promover inflamação e desmielinização observadas na esclerose múltipla.
A descoberta dos alvos do fingolimode: além das células do sistema imune
Em meados da década de 90, de forma paralela à descoberta do fingolimode, uma linha independente de pesquisadores buscando por genes envolvidos com o desenvolvimento do sistema nervoso levou à identificação de uma nova classe de receptores, chamados de receptores de lisofosfolipídeos. Estes receptores são proteínas da membrana celular com importantes funções em diversas células do nosso organismo, incluindo as dos sistemas nervoso, imune e cardiovascular. As diferentes linhas de pesquisa naquela época acabaram revelando ser o fingolimode um modulador destes importantes receptores, favorecendo a possibilidade de testar sua aplicabilidade médica.
Do transplante renal para a esclerose múltipla
Em função da atividade imunossupressora da ciclosporina, sua “prima distante” muito empregada como imunossupressor em transplante renal, os estudos iniciais com o fingolimode focaram também nesta indicação, tentando substituir a ciclosporina ou utilizá-la em dose menores, em combinação. Estes estudos mostraram uma eficácia do fingolimode inferior à da ciclosporina na prevenção da rejeição de transplantes, provavelmente relacionada à menor imunossupressão. Entretanto, o medicamento mostrou efeitos sobre a movimentação de células imunes, abrindo outras indicações terapêuticas possíveis, como a esclerose múltipla e outras doenças auto-imunes.
Focados agora na esclerose múltipla, os estudos iniciais com fingolimode mostraram diferentes possíveis benefícios, incluindo a estimulação de células que promovem mielinização no sistema nervoso, além dos efeitos em controlar os leucócitos responsáveis pelas lesões inflamatórias vistas à ressonância magnética, características da doença.
Os dois primeiros grandes estudos em pacientes com esclerose múltipla empregando fingolimode por via oral uma vez ao dia (Gilenya) mostraram significativa redução da taxa de surtos superior àquela observada por terapias já empregadas como os interferons e ainda um efeito importante: uma redução significativa da perda de volume cerebral, indicando propriedades neuroprotetoras da medicação.
Os estudos clínicos identificaram ainda a necessidade de cuidados especiais para uso desta medicação, incluindo a vacinação de pessoas que não tiveram catapora no passado e o monitoramento da primeira dose devido ao risco de bradicardia – uma redução da frequência cardíaca, transitória. Tomando-se estes e ainda outros cuidados no seguimento dos pacientes, a medicação foi aprovada como a primeira terapia oral imunomoduladora para esclerose múltipla, sendo hoje utilizada na prática clínica por pacientes em todo o mundo, incluindo o Brasil.
Como vimos, uma história que compartilha suas raízes na medicina chinesa – com o papel terapêutico dos cogumelos – e evoluiu para a identificação de um derivado com propriedades imunomoduladoras e neuroprotetoras específicas na esclerose múltipla, oferecendo uma possibilidade a mais no tratamento desta importante condição.